CENTENÁRIO
Memória viva, extremante lúcida e detalhista, testemunha e personagem de inúmeras histórias cosmopolenses, especialmente da velha Usina Ester. Neste dia 01 de agosto, completa exatos 100 anos de idade, Arfeu Tergulino, nosso altivo entrevistado.
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Arfeu Tergulino, memória viva e lucida da nossa história
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Seguindo todas as normas de proteção, máscaras, distanciamento e muito álcool em gel, visitamos o estimado centenário. Residente desde 1967, em uma das primeiras casas do bairro Bela Vista, região loteada pela Usina Ester, beneficiando os antigos funcionários do grupo agrícola.
A casa, localizada na aprazível Rua Eurides de Godoy, conserva toda sua arquitetura original, típica nos lares paulistas do anos 1960. Uma das várias casas edificadas pelo construtor Arno Blecha, entre os mais conceituados da época, responsável por centenas de obras em Cosmópolis, Artur Nogueira e Paulínia.
Impressiona os cuidados com a cinquentenária casa, resguardando intactos os peculiares portões baixos de ferro, gradil de vidros na garagem e varanda, revestimentos de pedras na fachada, azulejos e “pisinhos” cerâmicos, assentados em diversos tons pelos chãos e paredes.
Como não notar os tradicionais caquinhos paulistas, um dos maiores símbolos arquitetônicos do Estado, destacando com seu marcante tom vermelho em mosaicos pelos chãos, extremamente conservados pelos jardins e acessos à casa.
Nos guardados de Arfeu, estão os contratos de construção da casa, como os recebidos de pagamento do terreno.
Um dos loteamentos idealizados pelo saudoso “Guilhermino” Nogueira, entre os mais queridos diretores da Usina Ester.
Antes da chegada na “Villa”, Arfeu residia com a esposa e filhos na extinta Colônia Pinheiro, onde iniciou sua família em 1944.
Com a saudosa Júlia Fabri Tergulino, notória “campeã dos cortes de cana”, formou uma família de três filhos, Maria Madalena, Terezinha e Orlando (Tiquinho), responsáveis pela geração de cinco netos e cinco bisnetos.
FILHO DE ITALIANOS
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1945 - Arfeu aos 25 anos de idade - Photo Studio Hasse - Cosmópolis
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Arfeu Tergulino é um dos 11 filhos dos imigrantes italianos Conrado e Maria Ângela Dresde Tergulino, vindos para a região em 1900. O casal se conheceu em um gigantesco navio a vapor, entre centenas de imigrantes europeus, surgindo o namoro nos meses de viagem para o Brasil.
Os imigrantes fixavam moradia na pequena Vila José Paulino, atual cidade de Paulínia, residindo nas proximidades da Igreja de São Bento. Anexo com a casa da família, localizada na Rua do Comércio (Avenida José Paulino), Conrado prestava serviços de marcenaria e carpintaria, com especialidades em entalhes e marchetaria. Nesta localidade nascia Arfeu e os irmãos, sendo três homens e oito mulheres.
“Meu pai faleceu cedo, vitimado de um câncer na garganta, sofreu muito. Éramos todos crianças, eu tinha sete anos de idade, e naquele tempo, Paulínia não oferecia nada de trabalho, sem condições de continuarmos lá. Vivíamos de fubá, a única comida era polenta, nada mais.
Na construção do antigo “Sobrado” dos Nogueiras, entre outras obras, meu pai foi um dos carpinteiros contratados. A maioria dos trabalhadores eram italianos e descendentes, surgindo muitos amigos na Usina Ester, facilitando nossa vinda.
Cosmópolis sobrava serviços, faltando até mão de obra, era um colosso o progresso aqui. Então, uns irmãos seguiram na frente, arrumando emprego na Usina, e fomos seguindo atrás depois. Todos crianças, todos muito trabalhadores” (...).
Em 1928, os Tergulinos vendiam tudo em Paulínia, mudando-se para a Colônia Jaguari, trabalhando todos na Fazenda Usina Ester. Arfeu tinha oito anos de idade, residindo há 92 anos em Cosmópolis.
“A Usina Ester era como uma mãe, acolhedora, fraterna aos colaboradores, recebendo trabalhadores vindos de todos os lugares. Você cortava cana ouvindo as “prosa embrulhada” em italiano, alemão, russo, e até inglês, tinha uns vindos da Inglaterra nas colônias.
Mesmo assim, todos entendiam-se quando o assunto era trabalhar. O mesmo acontecia na Vila, em cada comércio um imigrante diferente, fazendo nova vida aqui, construindo Cosmópolis.
Cosmópolis era como ouvíamos falar, uma “Nova Campinas”, pequena, mas com um progresso gigante. Ficávamos fascinados quando chegávamos na Villa, tinha de tudo mesmo, comércio forte, e o povo muito unido” (...).
MEMÓRIA USINEIRA
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1949 - Usina Ester e parte do complexo colonial - Foto acervo E.N.F.A
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Unicamente na Usina Ester, Arfeu trabalhou mais de 50 anos, iniciando aos 12 anos de idade nos serviços braçais canavieiros, corte e limpeza de terrenos.
Ainda adolescente, começou a desempenhar sua mais conhecida profissão, o ofício de motorista. Exercida interruptamente, até os 93 anos de idade.
O motivo da aposentadoria, um violento assalto na região do Itapavussu, desanimando o habilidoso motorista com 7 3 anos de volante.
O início foi como tratorista do Grupo Agrícola Ester, um dos primeiros à dirigir os modernos tratores John Deere, ainda importados. Arfeu realiza serviços em todas as fazendas da família Nogueira, arando terras na São Quirino, Anhumas, Tabajara, e toda extensão da Usina Ester.
Arfeu relembra orgulhoso sobre as visitas dos proprietários nas terras, como Paulo de Almeida Nogueira, que gostava de admirar sua destreza nos serviços com tratores.
Com sua habilidade nos tratores e máquinas agrícolas, tornou-se requisitado profissional do inovador guindaste de cana (até então, o carregamento era totalmente manual), o qual, foi um dos responsáveis pelo transporte do porto de Santos à Cosmópolis.
CHOFER DE CONFIANÇA
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1946 - Arfeu transportando colonos para um baile em Cosmópolis
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No fim dos anos 1940, era escolhido como chofer da família Nogueira, ficando reconhecido pela extrema confiança dos usineiros. Arfeu ficava à disposição da família, diretores e altos cargos do grupo, fazendo constante viagens buscando e levando passageiros.
Os destinos não eram somente à Usina Ester e São Quirino, muitas vezes as viagens para eventos sociais, reuniões políticas, empresarias, e grandes bailes no Jockey Clube de Campinas.
“Trabalhei como chofer para todos os Paulos da família Nogueira, percursores da Usina Ester. Paulo de Almeida Nogueira, esposo da dona Esther, os filhos, netos e bisnetos.
Em especial o Paulo Filho, famoso político paulista e empresário, e seus filhos José Bonifácio e Paulo Netto. Transportei até o governador Carvalho Pinto, entre outros políticos, nas visitas à Usina, e períodos eleitorais na região” (...).
TURMEIRO E CAMINHONEIRO
Quando não exercia os serviços de chofer aos Nogueiras, realizava os transportes das turmas canavieiras, marcando época neste setor. Com os caminhões da Usina, adaptados para o transporte de trabalhadores, percorria as colônias distantes, levando e entregando funcionários.
O mesmo caminhão, acostumado com as lidas nos canaviais, era lavado com muito esmero nos fins de semanas, transporte a “colonada” para os bailes na região.
Como poucos na empresa, conhecia as velhas estradas paulistas, ficando muitas vezes responsável pelas entregas do famoso “Açúcar Ester” na grande São Paulo. Arfeu realizada as entregas aos grandes distribuidores, como redes de restaurantes, padarias e mercados.
No fim dos anos 1960, aposentava-se dos trabalhos na Usina Ester, porém, continuava com a profissão de motorista, trabalhando como “chofer de praça” (taxista), no ponto da “Praça do Coreto”. No ponto dos jardins, como era conhecido, permaneceu por 25 anos.
GUERRA E REVOLUÇÃO
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1944- Soldado Arfeu aos 24 anos de idade, representando Cosmópolis na defesa nacional |
No período da Segunda Grande Guerra Mundial, fim dos anos 1930 até 1945, era escolhido para representar Cosmópolis na defesa nacional.
No período da guerra, o serviço militar era obrigatório aos homens com mais de 18 anos de idade, sendo de extrema importância naquele período. As seleções eram feitas pelo Exército brasileiro, que destinava os novos soldados para todas suas aéreas.
Arrimo de família, recém casado aos 24 anos de idade, prestou serviços militares no Estado, não embarcando para as lutas armadas na Europa.
Arfeu protegia as terras brasileiras de possíveis invasões nazistas, junto com milhares de jovens da região, permanecendo seis meses como soldado.
O fim do período, então indeterminado, era o fim da guerra com a rendição dos nazistas e fascista.
Sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, revolta paulista contra o Ditador Getúlio Vargas, exigindo um nova constituição, suas memórias relembram a intensa movimentação na região. O Sobrado dos Nogueiras foi um dos quartéis generais da revolução, entre os principais do Estado, reunindo altas patentes e soldados.
Arfeu tinha 12 anos de idade, ainda residindo na Vila José Paulino. Deste período, cerca de quatro intensos meses, recorda a passagem das tropas paulistas seguindo para Cosmópolis e região, passando por dentro de Paulínia.
“Não sabíamos ao certo de nada, era muito criança, o entendimento só aconteceu quando adulto. As mídias eram censuradas, o Getúlio inventava muita mentira, confundindo a população contra São Paulo.
Aqueles jovens soldados, entregando suas vidas por São Paulo, lutavam pela liberdade, autonomia e direitos do povo’ (...).
Arfeu nunca frequentou uma escola, sua motivação era somente os trabalhos para o sustento da numerosa família. Como disse, aprendeu o básico para enfrentar o mundo dignamente, escrever o nome, ler e fazer contas. Ensinamentos compartilhados pelos saudosos amigos Frederico Decreci e Davi Sala.
Mesmo sem estudos acadêmicos, diplomas e certificações, Arfeu é um mestre único, bacharel nas ciências da vida. Um professor com cem anos de escola da vida, sem dúvida, entre os mais importantes a lecionar em Cosmópolis.
Existe um segredo para longevidade, especialmente, com a mente lúcida? Perguntei ao prezado centenário, que respondeu com o toda sua serenidade.
“Não existe segredo, porém, é para poucos. É ser uma pessoa de caráter, honesta e direita com todos. Quem é assim, vive mais, por não ter a preocupação em carregar na sua consciência, os erros cometidos aos outros”.
Texto e fotos Adriano da Rocha
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01/09/2010 - Arfeu rodeado dos netos e bisnetos celebrando os 100 anos de idade
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Matéria impressa no jornal “O Cromo”, edição deste sábado(01). Distribuição gratuita em Cosmópolis e Paulínia.
Matéria publicada na edição especial do "Dia dos Pais", sexta-feira (07) no jornal impresso e site da "Gazeta de Cosmópolis".